É, parece
que em Salvador a rua tornou-se de fato anacrônica como preconizava
LeCorbuiser. E os baianos, ao menos alguns, deliram de felicidade ao
testemunharem a construção de novos shoppings, espigões de luxo, prédios
voltados para os segmentos médios, com apartamentos tão exíguos espacialmente
que para vendê-los é necessário muitas vezes lançar mão de uma estratégia que
poucos conhecem: layouts de plantas com moveis de dimensões menores que o
padrão, o que dá sensação de mais espaço. O futuro morador, encantado com as
facilidades (... e facilities!!!) como piscina, quadra poliesportiva,
varanda gourmet, parque infantil, academia, spa e sei mais lá o que, pensa estar
no paraíso e esquece que terá de dividir esses espaços com mais trocentos
vizinhos das trocentas unidades das trocentas torres do empreendimento que
ainda oferece segurança total, 24 horas por dia, com moderníssimo sistema de
vigilância interna, portarias, etc, etc!!!! O feliz comprador do imóvel dá
graças a Deus e a deus, e sente-se privilegiado por morar e criar os filhotes
em plena e total segurança, em ambiente saudável. Mas, seria o mundo um
conjunto de guetos de luxo ou um paraíso standard para os menos
abastados?
Um dos mais
eminentes pensadores da atualidade, o polonês Zygmunt Bauman, autor do livro Confiança
e Medo na Cidade, tece uma apurada e inteligente reflexão acerca dos
espaços públicos contemporâneos, transformados em campos de incerteza,
insegurança, violência e consequentemente de segregação e intolerância. O medo
figura como a principal variável dessa transformação. O medo de se misturar, ou
mixofobia, em contraposição a mixofilia, ou o apelo da mistura,
da diversidade. Na Europa, esse medo atinge seu ápice com atitudes xenofóbicas
que protagonizou episódios cruéis na década de 90. Na nossa realidade, esse
medo se recobre de preconceito, racismo, justificado pelo medo da violência.
Assim a
cidade vai tomando forma, ou melhor, deixa de ter forma, para se tornar uma
COISA insustentável, fragmentada, sem coração e sem alma. As ruas, ou veias e
artérias da cidade, perdem sua característica de lugar de encontros e
desencontros, tornam-se esclerosadas, entupidas com o fluxo ininterrupto de
carros impenetráveis à luz, ao calor, aos cheiros e sons que correm lá fora e
representam os perigos.
Uma
intrincada rede de justificativas, razões e explicações dão margem a uma
polemica sem fim quando se trata das formas de segregação e discriminação
social, racial e espacial. As classes médias acreditam que a formação desses
"guetos" são medidas de prevenção ante a insegurança e
violência institucionalizada. Cegas, guiadas pelo desejo de ascensão e
capitalização social e protegias pela ideologia da violência indiscriminada,
aderem a essa configuração espacial sem identificar que a perda do contato e da
interação com a diversidade e a diferença é que nos mantem vivos, alertas,
reflexivos e ativos mental, intelectual e afetivamente. Que filhos serão esses,
criados apartados do mundo? Que sujeitos habitarão as cidades no futuro? Que
cidadãos teremos?
Não é
necessário muito esforço para ver o futuro se antecipar, bater a porta e se
revelar nas telas planas das TVs de LED, no IPAD, IPOD, em todas Mídias de
Todos os Santos Tecnológicos e se materializar no Carnaval, a "maior festa
de rua do mundo", a "mais democrática de todas as festas",
afirmam as mídias de toda ordem. Não é difícil acreditar nesses jargões, que
são parte da ideologia do "tudo bem meu bem!".
Sem muito
esforço, um olhar mais apurado é capaz de deslindar o centenário e
segregacionista modelo da casa grande-e-senzala refletido na reprodução do
espaço urbano e que se repete na avenida, em diferentes instancias e dimensões.
Observem. Pesquisem. A orla de Salvador é prioritariamente ocupada por brancos
de segmentos médios, enquanto os negros se distribuem nas áreas centrais, mais
pobres, carentes de infraestrutura e serviços. No carnaval, os blocos de
"gente bonita" circulam no circuito Barra-Ondina enquanto os afoxés,
blocos negros e outras agremiações se restringem ao circuito Dodô-e-Osmar.
Obvio que existem as exceções! Estamos na época do "politicamente
correto", não poderia ser diferente! Mas, podemos chamar isso de
democracia? Diversidade? Igualdade?
A
privatização do espaço público em Salvador por conta dos blocos do circuito
Barra-Ondina é escandalosa!!! Ali se concentram os camarotes das elites, que
recebem atenção, investimentos do poder público, usam e abusam da rua, que toma
ares democráticos e perde temporariamente seu anacronismo, para amealhar
milhões de reais em "7 dias de folia"!!! O que dão à cidade, em
troca? Nada!!! Lembrem-se o espaço público é indistintamente público e mantido
com impostos pagos por todos os cidadãos. Se beneficiar com seu uso
significa, no mínimo, alguma espécie contrapartida. Por que o IPTU de alguns
imóveis são mais caros do que outros? Porque estes imóveis estão localizados em
áreas com melhor padrão de urbanização, consequência de obras executadas pelo
poder público com dinheiro de taxas, impostos que são pagos por todos.
Igualdade me sociedades tão desiguais não significa tratar todos igualmente e
sim tratar desigual os desiguais, dando mais a quem tem menos. Portanto, é preciso
rever esses padrões, essa permissividade. Por que essas empresas não podem
assumir o compromisso de executar alguma melhoria urbana, realizar alguma ação,
uma "acupuntura urbana" que
agregue mais humanidade à cidade, melhorando a qualidade de vida de seus
habitantes? Não fariam mais do que a obrigação!!!
A folia do
Momo se finda, e a vida volta ao normal. A subversão do publico/privado de que
fala DaMatta no carnaval e que aqui se revela superficial e aparente, deixa de
existir como por encanto. Realmente somos um povo sem igual! Creio que não há
precedentes na historia humana de artifícios tão astuciosos e sagazes para
lidar tão bem com a subserviência e a submissão do que o faz-de-conta do
carnaval: durante alguns dias do ano tudo é permitido, a ordem se subverte,
procede-se a mistura, caem as diferenças; sufoca-se a alma, a sede de
liberdade, a vontade e dissemina-se a ilusão da igualdade, da democracia;
entorpece-se o espírito até que no ano seguinte tudo aconteça de novo!
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