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segunda-feira, 12 de março de 2012

De Profundis


 
Durante o período em que esteve preso, Oscar Wilde, um dos maiores escritores da língua inglesa, escreveu o De Profundis, uma longa e dolorosa carta onde expôs, sem pudor, as aflições que lhe perpassavam a alma. Wilde é conhecido por seus comentários ferinos, sarcásticos e irônicos, mas principalmente pela beleza, profundidade e estética contidas em sua obra. Nesse sentido é um artista completo, que transitou com desenvoltura pela dramaturgia, produziu poemas e contos infantis que se destacam pelo lirismo, delicadeza e sensibilidade.
O Fantasma de Canterville é uma divertida novela onde brinca inteligentemente com as tradições britânicas e a modernidade americana, produzindo uma crítica ácida através do confronto entre o american way of life e o tradicional estilo de vida inglês.
Sobretudo, Wilde era um crítico vivaz e caustico da sociedade e seus costumes e que foi além das palavras, com um comportamento transgressor e penetrante que corajosamente violou as regras e normas de conduta moral da sociedade vitoriana. Ganhou muitos inimigos e desafetos, mas isso não foi suficiente para empanar o brilho de sua inteligência e sagacidade, eternizada nos seus escritos.
Longe das entranhas expostas no De Profundis que mergulha no poço de desespero, angustia, esperança e paixão da alma humana, vivemos uma era de superficialidade. O que importa são as aparências, mesmo para expressar sentimentos e opiniões. São as luzes, os holofotes, o palco e a espetacularização, as novas dimensões do ser humano. A superfície se contenta com esses reflexos e se distancia de olhares mais argutos que buscam as profundezas da alma, escondida, oprimida e esquecida pela entronização contemporânea da felicidade fugaz, da beleza plastificada, do conhecimento dos livros de auto-ajuda e da ilusão de que o mundo é uma casca de noz, tão pequeno, que só cabe o eu.    
Há uma uniformidade doentia, aborrecida nas coisas, nas pessoas e nos lugares. Mesmo o diferente é igual.  O novo não passa de uma repetição entediante do passado, não do passado distante, do passado recente. A fórmula do sucesso é a mesma: a repetição infinita daquilo que aparece como novo e se transforma no velho pela falta de novidade. Falta reflexão, imersão. Há um lapso de profundidade.
Vejamos por exemplo a paisagem urbana em Salvador. Formada por construções de diferentes portes, por ruas, passeios, espaços e equipamentos urbanos além da vegetação, a paisagem deve ser pensada como um conjunto que expresse harmonia, agrade o olhar e produza conforto. A arquitetura local irá contribuir decisivamente para a formação dessa paisagem. E qual a qualidade dessa arquitetura na nossa cidade? Que arquitetura se produz aqui? Fácil responder!!! A cidade se caracteriza pela produção voraz de maciços de prédios de gosto duvidoso e decisivo na constituição de uma paisagem monótona, desestimulante, que reduz drasticamente a rua a um elemento sem importância, retrógrado e caricato.
A arquitetura era (ou ainda é?) oficio de artesãos, mas que parece ter se rendido ao processo de industrialização recentemente adotado pela construção civil que passou a produzir em escala industrial, como aconteceu com a moda e outros mercados devorados e regurgitados pelo capitalismo industrial. 
Independente dos rumos que venha tomando a arquitetura na nossa cidade, ela permanece mundo afora, como um importante meio de produzir espaços confortáveis, agregar beleza, e compor a paisagem urbana.  Em primeira instancia, a função da arquitetura é abrigar, habitar. Em que medida, porém, pertence o habitar a um construir, questiona Heiddeger. O habitar-construir deve ser pensado como forma de estar no mundo, já que o espaço é a substância, o lugar da vida. 
A despeito da produção de espaços internamente confortáveis com sua estética impessoal de casas de revista, a arquitetura local pouco tem contribuído para a formação de uma paisagem urbana de qualidade. Quais são as obras arquitetônicas de destaque na paisagem urbana soteropolitana nos últimos 30 anos? Respondam se forem capazes!!!!
O uso de iluminação e ventilação artificial são a tônica da arquitetura comercial numa cidade cujo potencial de luminosidade perde apenas para Atenas, além da ventilação privilegiada, predominantemente sudeste, embora haja variações nos níveis de conforto térmico, por vezes elevado ao nível de estresse térmico que interfere na produtividade, na saúde e bem estar dos indivíduos.  Essa deveria ser uma condição determinante para a composição da paisagem urbana da cidade, que envolve tanto os empreendimentos da iniciativa privada quanto o planejamento urbano. O resultado entretanto, é uma cidade sem permeabilidade, carente de vegetação, vulnerável a enchentes e alagamentos.
A monotonia da repetição se encontra em toda a cidade, mesmo nos bairros mais elegantes. Aliás, é aí onde mais se destaca. O modismo do momento reduz a produção arquitetônica baiana a um conjunto de casas que não passam de cópias pífias e arrevesadas do período modernista, com a pretensão de se caracterizar como uma releitura contemporânea. São cubos e cubos, enfileirados e/ou superpostos, intercalados por jardins e áreas verdes tão iguais, que é fácil se confundir e se perder no reticulado de quadras e ruas que formam os condomínios de luxo.

Ville Savoye-  França - Le Corbusier
Falta personalidade, falta identidade, melhor, a identidade se resume a uma versão única e que se constitui em um signo seguro de aproximação do igual, do outro, eliminando-se os riscos de exposição à violência do mundo, dos espaços vulneráveis das ruas e praças. A uniformidade e a monotonia, portanto, garantem espaços seguros; funcionam como signos de identidade, estampados em elementos arquitetônicos – janelas em fita, materiais nobres, enormes portas pivotantes  - que trazem distinção e ao mesmo tempo caracterizam aquele grupo.
A maioria irá afirmar, não sem razão, que o mercado imobiliário é que define os parâmetros a revelia da nossa vontade. A sociedade contemporânea sofre o que se denomina de “responsabilização”, isto é, a transferência de responsabilidades que também são nossas para mãos de outros, longe do nosso alcance. Dessa forma nos tornamos isentos de culpa e confortavelmente mostramos as mãos atadas que impedem o exercício do direito a escolha, ao protesto e a mudança!
Recentemente a ZARA, uma cadeia de lojas internacional com presença marcante no país e em Salvador, foi alvo de investigação do ministério público em São Paulo que constatou o uso de mão-de-obra estrangeira em condições de trabalho escravo para produzir as peças de vestuário admiradas e cobiçadas pelas brasileiras-baianas. A mídia local praticamente não se pronunciou e a sociedade baiana passou ao largo para anunciar no Carnaval que a democracia estava garantida por uma banda baiana que resolveu abolir as cordas do trio na primeira noite da festa. Festejadas e aplaudidas pela mídia, atitudes hipócritas e superficiais que não passam de estratégia barata de marketing, ganham dimensão altruística do politicamente correto.  Cegos e impermeáveis à estultice que nos cerca, não reagimos ao óbvio.
A cidade parece seguir esse caminho, colocando em “mãos alheias” seu destino e vocação. Reclama-se do prefeito, seus assessores, secretários e vereadores. Esquecemos que nós que os elegemos?
O voto é uma arma poderosa quando usado com compromisso e não se resume ao momento da votação quando lá, assinalamos nosso candidato. O voto transcende a urna. Representa um compromisso, um acordo, um contrato tácito que foi realizado entre a população e os governantes. Se esse contrato não tem suas cláusulas atendidas e cumpridas é necessário revê-lo, redimensioná-lo ou até mesmo rompê-lo.
A cidade, ainda que moribunda, agonizante, não morreu, porque seu coração e seus pulmões pulsam no ritmo dado pela forma que seus habitantes pensam, constroem e resignificam seus espaços. A cidade precisa de nós para sobreviver.

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